RCC Tocantins
28/05/2007 - 13h41m

América Latina tem déficit de leigos cristãos na vida pública

 
APARECIDA (ZENIT.org).- A América Latina tem um déficit de leigos católicos bem formados, apaixonados por Cristo e por seu Evangelho, que ofereçam uma contribuição decisiva na vida pública, considera o professor Guzmán Carriquiry, subsecretário do Conselho Pontifício para os Leigos.

O doutor Carriquiry, uruguaio, encontra-se em Aparecida ao ter sido nomeado por Bento XVI como perito na Quinta Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe. Nesta entrevista concedida a Zenit, o primeiro leigo a ser subsecretário de um dicastério vaticano faz um balanço dos temas decisivos que a reunião eclesial está tratando.

--O que lhe chamou a atenção do discurso inaugural que o Papa dirigiu ao inaugurar a Quinta Conferência?

--Professor Guzmán Carriquiry: O discurso inaugural de Bento XVI em Aparecida afirma alguns aspectos cruciais e decisivos que são fundamentais em todo transcurso e na guia iluminadora e segura desta Conferência.

Eu distinguiria desse discurso algumas aproximações da realidade latino-americana e as chaves de leitura cristã da realidade latino-americana.

O primeiro aspecto crucial que o discurso do Papa tratou foi o da inculturação da fé católica desde a origem de nossos povos, como resposta à busca e à espera da revelação do verdadeiro rosto do Deus desconhecido. O verbo de Deus pôs nas comunidades indígenas muitas sementes que depois com a evangelização chegaram à sua frutificação, à sua purificação, à sua plenitude.

O segundo ponto que me impressionou profundamente no discurso do Papa é a maneira em que o Santo Padre reconheceu essa singular experiência histórico-cultural que nos leva a reconhecer-nos como latino-americanos. Insistiu em como a marca católica se manifesta em muitas dimensões de nossa cultura graças a uma mesma história e a um mesmo credo.

Em terceiro lugar, também foi importante que reconhecesse a piedade popular como um belíssimo tesouro, fazendo referência a Cristo sofredor, à presença de Cristo na Eucaristia, à maternidade da Virgem Maria.

Isso quanto à aproximação de toda a realidade latino-americana. São aspectos fundamentais dessa aproximação.

Na viagem de Roma rumo a São Paulo, falando espontaneamente com os jornalistas durante o vôo, o Santo Padre disse: «Eu amo muito a América Latina [...]. Não sou um especialista, mas estou certo de que aqui se decide, ao menos em parte -- em uma parte fundamental --, o futuro da Igreja Católica. Isso sempre foi evidente para mim. Como é óbvio, sinto a necessidade de aprofundar ainda mais em meu conhecimento desse mundo».

Mas os pontos que deu de aproximação à realidade latino-americana foram absolutamente fundamentais. Como o foram também os pontos de uma hermenêutica cristã da realidade, uma leitura cristã dessa realidade.

Quanto a essa leitura da realidade, o discurso do Papa esteve muito centralizado na primazia da fé. Como enfrentar a realidade à luz da fé?

O Papa afirma brevemente, mas com enorme profundidade, que Deus é o mais real da realidade e é um erro destrutivo colocá-lo entre parênteses ou ignorá-lo em toda análise da realidade. E isso é fundamental, porque o método que se segue geralmente nessa Conferência é o de «ver, julgar e agir».

Ele nos alerta para que não fiquemos simplesmente em análise econômicas, sociais e políticas, e ante o perigo de que o olhar do crente não perceba a presença de Deus como o mais real de toda realidade. Ignorar isso, diz o Papa, seria um erro destrutivo.

Enfrentar os problemas sociais e políticos sem essa primazia da fé continua sendo um erro destrutivo. Ou seja, quando Deus está ausente não se enfrentam bem os problemas sociais e políticos. Quando Deus está ausente, não se atua efetivamente a favor do bem dos homens e dos povos. Quando se quer edificar uma sociedade sem Deus, constrói-se contra o homem.

--Como a Conferência de Aparecida acolheu o discurso do Papa? Em alguns setores sociais se criticaram algumas palavras desse discurso.

--Professor Guzmán Carriquiry: O discurso do Papa foi muito bem recebido nesta Quinta Conferência Geral pelos bispos. Há toda uma tarefa muito importante em curso para assimilá-lo em todas suas implicações e conseqüências. Mas não duvido de que já tenha marcado profundamente esta Conferência. Foi tão importante para esta Conferência como o discurso inaugural de João Paulo II para a Conferência de Puebla.

Pela imprensa sabemos que alguns grupos indigentes e algumas organizações não-governamentais reagiram de uma forma isolada e inclusive insultante, denunciando que a fé católica teria sido imposta violentamente aos indígenas como verniz ideológico de uma conquista, de uma exploração, até inclusive de um genocídio.

O mínimo que se pode responder a isso é que tal reação é tributária de uma lenda negra que falsifica a história real. Se isso tivesse sido a origem da fé, então teria sido abandonada há muitíssimo tempo. Ao contrário, no início do século XXI, 85% dos latino-americanos ainda estão batizados na Igreja Católica. E quando se fazem pesquisas em nossos países, os resultados são sempre os mesmos. Os mais altos níveis de confiança, de credibilidade, de consenso e esperança estão postos por nossos povos na Igreja muito mais que em outras instituições civis e públicas.

É verdade que houve casos e situações de abuso e de imposição da fé. Mas a propagação do Evangelho de Cristo foi percebida e acolhida pelos indígenas como uma resposta persuasiva, atraente para os desejos de verdade e sentido da vida, de justiça, de felicidade, inclusive em condições muito dramáticas. O acontecimento de Nossa Senhora de Guadalupe foi absolutamente capital nesse processo de inculturação e propagação da fé.

--Qual é o ambiente que se está vivendo na Conferência?

--Professor Guzmán Carriguiry: Em geral, estamos vivendo na Quinta Conferência um ambiente de serena comunhão. Chama a atenção que dentro da Conferência -- e não é uma visão ilusória, mas muito real -- não há polarizações e contraposições. Nesse sentido, esta Conferência é menos tensa e dramática que as anteriores. Isso é para o bem, naturalmente, como um caminho de amadurecimento. Mas também é um sinal preocupante quando não há debates que vão até o fundo e não fazem aflorar alternativas, fixar prioridades.

De qualquer forma, esta Quinta Conferência está sustentada e protegida por muita oração. Estamos trabalhando sob o Santuário de Nossa Senhora Aparecida, com a liturgia eucarística cotidiana, com a liturgia das horas, com a presença maternal, acolhedora e protetora de Nossa Senhora, e com a companhia extraordinária do povo pobre e fiel da América Latina.

--Como a Conferência está tratando do tema dos leigos?

--Professor Guzmán Carriquiry: Estão presentes leigos de muitos países latino-americanos nesta Conferência, inclusive entre os peritos. É a primeira vez que se dá uma categoria de convidados que são os representantes dos movimentos eclesiais, ou seja, das novas comunidades. O tema do laicado não poderia faltar.

São 98% dos batizados na América Latina. Quando se fala de converter-se em discípulos e missionários de Jesus Cristo, isso toca a vida de todos os batizados. Dá-se uma preocupação fundamental pela vigência da tradição católica, que se expressa na riqueza da piedade popular, para que se transforme em carne e sangue de homens novos e mulheres novas, que, educados na fé, crescidos na fé, em um renovado encontro e seguimento de Jesus Cristo, em uma mais profunda comunhão pessoal e comunitária com Ele, se convertam em seus discípulos.

Transbordando de alegria e gratidão na missão, comunicando a experiência do dom do encontro com Cristo, em todos os ambientes da convivência social. Isso é o fundamental para todos, redescobrir a dignidade, a beleza e a alegria de ser cristãos.

Outro tema que sobre essa base se trabalhou muitíssimo é a preocupação dos bispos por uma certa fragilidade e uma certa irrelevância em muitos casos da presença dos fiéis leigos nos areópagos da política, da vida pública, da universidade, da cultura, dos meios de comunicação, da economia, para que possam ser construtores de sociedade, como dizia o documento da Conferência de Puebla.

Dá-se uma fragilidade, ou às vezes uma certa irrelevância. Há leigos muito generosos que colaboram e participam das comunidades cristãs, lotam nossos santuários, servem na catequese, são ministros não-ordenados para tantas atividades de edificação das comunidades cristãs. Mas se dá um déficit de presença do leigo desde sua fé na vida e no destino de nossos povos. Faltam leigos coerentes e competentes, valentes, audazes, realistas e proféticos ao mesmo tempo, que abram caminhos do Evangelho na vida pública e na convivência social em nossos povos. Os povos se propõem a cobrir esse déficit a partir desta Conferência.

É verdade que há muitos políticos na América Latina que se dizem católicos. E ninguém julga as consciências. Mas muitas vezes, ao analisar as ações, parece que essa confissão de católicos importa mais como uma certa busca de consensos ou como um certo tributo, ou homenagem à tradição católica dos povos, em vez de ser uma adesão pessoal à responsabilidade católica no testemunho, no serviço do bem comum entre os povos.

Precisamos, portanto, de muitas mudanças nos setores dirigentes e de liderança na América Latina; é preciso acompanhar, alimentar, formar, sustentar gerações de leigos católicos que vão superando esse déficit. Que estejam presentes nos lugares onde está em jogo a construção de uma nova América Latina.

LINK CURTO: https://rccto.org.br/r/3U

© 2012-2024. RCC-TO - Todos os direitos reservados.