RCC Tocantins
04/09/2007 - 13h45m

Bispo chinês fala sobre sua missão na Amazônia

 
São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, não é um município comum. Está cercado pela floresta e inserido na maior bacia de águas escuras do mundo. É o mais indígena dos municípios brasileiros, habitado por 22 etnias em mais de 550 comunidades. Situado próximo às fronteiras da Colômbia e Venezuela, possui o terceiro maior território do país com mais de 109.000 Km2 de área. Pela sua importância geopolítica, conta com a presença crescente de militares. O mais interessante é que a diocese de São Gabriel da Cachoeira tem à frente um bispo chinês: dom José Song Sui Wan, SDB.

Dom Song cursou o Ensino Médio no Seminário Salesiano de Hong Kong, de 1955 a 1959. No Brasil, licenciou-se em Filosofia em Lorena, SP (1962-1966), especializou-se e fez o Mestrado em Filosofia pela Universidade Pontifícia Salesiana de Roma (1968-1971). É licenciado em Letras e fala com fluência chinês e outros dialetos, português, inglês, italiano, espanhol, latim, grego, francês e alemão. Entre outras atividades como padre salesiano, em Lorena, Cruzeiro, Lavrinhas, Campinas e Araras, SP, foi professor de inglês, português, italiano, música, pedagogia, filosofia e teologia. Ordenou-se bispo no dia 27 de abril de 2002, em Araras.

Dom Song, o senhor nasceu na China. Como foi parar na diocese mais indígena do Brasil?

Uma vez eu estava entrando na igreja matriz de Araras. Um menino me viu paramentado e assustado me perguntou: “Você é índio?” “Sim, sou da tribo Xangai”, respondi. Nasci em Xangai, hoje considerada uma das cidades mais modernas do mundo. Mas quando nasci, nos longínquos 1941, era bem mais simples. Em 1949 a minha família abandonou a terra natal e partiu para a misteriosa cidade de Hong Kong, que significa, “porto perfumado”. Eu falava só o dialeto de Xangai e fiquei mudo, pois o povo falava cantonês, dialeto que tive que aprender para me comunicar. Na escola, estudava ainda a língua oficial, o mandarim. Desde pequeno já era meio “linguarudo”. Nove anos depois, meu pai resolveu vir para o Brasil. Tive que aprender a língua portuguesa. Quarenta e cinco anos depois o Espírito Santo cochilou e me ordenei bispo. Vim parar no Rio Negro, a diocese mais indígena do Brasil com 22 línguas diferentes!

Por que sua família deixou a China?

A perseguição aos cristãos e a busca de liberdade foram os motivos principais. Nossa família sempre foi católica, com mais de cinco gerações. Meu pai lecionava na Universidade Aurora de Xangai, dirigida pelos jesuítas. Como bom católico, ele escrevia artigos na revista da universidade sobre o comunismo, suas ameaças, erros e perigos. Com isso, entrou na “lista negra”. Eu tinha nove anos, mas já entendia alguma coisa. Soube que um belo dia, o reitor da universidade, padre Germain, advertiu o meu pai: “Senhor Song, o comunismo está chegando e você está em perigo também. Fuja enquanto há tempo”. Naquela noite meu pai, antes da oração e do Rosário que recitávamos todas os dias, disse a todos nós (mamãe, duas irmãs e três irmãos): “o comunismo está vindo e vamos sair de Xangai. Começamos a novena a Nossa Senhora para pedir o passaporte. Não será fácil, mas vamos tentar”. O primeiro milagre aconteceu: o passaporte saiu no nono dia.

Como é a diocese de São Gabriel da Cachoeira?

É considerada “a mais confortável diocese do Brasil” devido ao número de padres por habitante: 18 para pouco mais de 60.000. Tem uma área de aproximadamente 300.000 km2, (tamanho da Itália, menos a Sardenha). É maior do que todo o estado de São Paulo. 97% da população são povos indígenas. Os 18 padres são salesianos, missionários do Sagrado Coração (MSC), missionários xaverianos e diocesanos, entre os quais, quatro indígenas. Apesar das distâncias o clero se quer muito bem. Temos ainda 55 Irmãs Salesianas (FMA) e cinco Irmãs Catequistas franciscanas. Aquelas se dedicam à saúde e promoção social, estas se dedicam à saúde, catequese e formação de futuras irmãs.

As distâncias criam dificuldades na assistência pastoral?

Entre as dez paróquias e as centenas de comunidades rurais, a principal via é fluvial. Os padres não têm carro, mas possuem barco ou voadeira (motor de popa); o combustível é o mais caro do Brasil (mais de R$ 3,00 o litro). A distância entre as paróquias também assusta. Para chegar à paróquia mais próxima levo cinco horas, à mais distante, cinco dias. Mas apesar das dificuldades financeiras e materiais, levamos uma vida muito saudável e alegre. Cada vez que saio para as visitas pastorais, tenho a impressão de estar fazendo um “piedoso piquenique”. Levo sanduíche, refrigerante, bolachas, colete salva-vida (não sei nadar), balas para as crianças e mágicas para todos.

A diocese recebe ajuda de igrejas-irmãs no Brasil ou além-fronteiras?

Por enquanto não. Contudo, este ano, por causa da Campanha da Fraternidade sobre a Amazônia, estamos recebendo muitas visitas e algumas doações. Mas a alegria será grande quando recebermos a oferta da diocese de Paranaguá, PR, que nos doou o padre Osvaldo Cobianchi por um tempo. A CF 2007 fez um bem imenso no sentido de conscientização. Creio que esta Campanha não foi essencialmente ecológica, de defesa da natureza ou preservação da flora e da fauna. Foi uma Campanha missionária. Ficou claro que o missionário não é apenas aquele padre velhinho, de barba branca, no meio da floresta amazônica remando sua canoa. Todos os cristãos são missionários e discípulos de Cristo.

Qual é a característica do seu ministério episcopal?

Sempre acredito na força, valor e necessidade do contato pessoal. Por isso, desde o início das minhas atividades episcopais tomei como uma das prioridades as visitas domiciliares. Aos sábados ou domingos pego uma rua e vou batendo nas portas, casa por casa. Converso e ouço os anseios do povo. Ofereço uma pequena Bíblia, um Rosário, uma estampa de Nossa Senhora e um folheto de oração. Dou benção às casas, aos doentes, aos velhinhos e umas balinhas às crianças. Nestes cinco anos (2002-2007) visitei 5.500 famílias. Acredita?

Sou salesiano e por isso gosto de música (repare meu nome: Song, em inglês: canção) e dedico-me à mágica. Tenho uma escaleta (pianinho portátil) que é presente de estimação de minha mãe. Às vezes sinto vergonha, porque a mala de paramentos de bispo é bem menor do que a que contém os instrumentos musicais e os apetrechos de mágica. Dom Bosco que me perdoe, aliás, foi ele quem me ensinou estes “truques”. O papa Bento XVI faz apelo à renovação e nos estimula para ter novo ardor, novos métodos e nova linguagem. De fato, está na hora de nos renovarmos e apresentar às pessoas, uma Igreja mais alegre e atraente. A sociedade espera contemplar um rosto divino na pessoa e um rosto humano de Deus.

Qual a importância da carta que o papa Bento XVI escreveu aos católicos da China?

Realmente se trata de uma questão fácil e difícil. Fácil, porque entre a Igreja Católica Patriótica Chinesa e a Igreja Católica Universal não há divergências doutrinais. Difícil, porque se trata de uma questão pessoal, disciplinar. Nisso, Jesus, o Mestre nos dá uma boa dica quando diz: “quero misericórdia e não sacrifício”. Então usemos de misericórdia, compreensão e perdão. Jesus disse ainda: “aprendei de mim que sou manso e humilde”. Então usemos a mansidão e a humildade. A história da Igreja tem demonstrado que o orgulho tem sido prejudicial para a resolução de certas questões delicadas. Desde 1949 não vejo mais a minha terra, mas todos os dias eu rezo e ofereço sacrifício pela sua reabertura. Creio firmemente que um dia, após muito diálogo e oração, as muralhas também cairão. Que aconteça este “negócio da China”. Nossa Senhora, a Rainha da China, vai conseguir este milagre.

O senhor tem contato com cristãos na China, tem estado por lá ultimamente?

Eu sou ex-aluno salesiano da Tang King Pó School de Hong Kong. Em 2002, quando era ainda um bispo quase zero quilômetro, a minha escola completou 50 anos de fundação. E eu, “ilustre hóspede” fui convidado para os festejos. Naturalmente pagaram minhas passagens, ida e volta. E assim pude rever e reviver a minha querida Hong Kong. Mas o meu sonho ainda é um dia pisar o solo de minha terra natal, “tribo Xangai”.

Como o senhor vê a evolução nas relações entre a Santa Sé e o governo de Pequim?

Muitas vicissitudes aconteceram. Não faltaram momentos de constrangimentos, mas também houve sinalizações de esperanças. O muro de Berlim não caiu? Então, a muralha (não literalmente) da China também abrirá seus portões para uma liberdade ampla e irrestrita. A China, a maior população do mundo, ainda abrirá seus braços dando boas vindas a todos. Este dia virá? Sim, um dia. Talvez eu não veja, mas muita gente jovem ainda vai me dar razão.

Fonte: Revista Missões

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