RCC Tocantins
03/08/2007 - 00h00m

Renegar o Antigo Testamento?

 

Peço sua opinião sobre esta matéria publicada no Jornal da Cidade de Bauru (3/12/2006). Sei que as pessoas que têm fé não se abalam, mas receio as conseqüências para os menos esclarecidos ou os jovens, que podem se escandalizar e enveredar pelo caminho da descrença. (leitor anônimo – Bauru/SP.)

Na matéria enviada pelo leitor, a professora de literatura Mariza Bianconcini Teixeira Mendes fala sobre sua dissertação de mestrado, que teve como tema o Antigo Testamento, com o título: “No princípio era o poder”. Como o nome indica, ela chegou à conclusão de que o Antigo Testamento se resume a uma “história pela disputa de poder”, na qual encontrou “mais violência, corrupção, desonestidade e traição” do que em qualquer outro livro que já leu. “E tudo feito em nome de Deus”. Por esse motivo, ela acha que o Antigo Testamento deveria ser renegado pelos cristãos, porque “não é possível aceitar um Deus como aquele”.

Embora o autor da reportagem diga que “ela fala com o conhecimento de quem seguiu o catolicismo quando adolescente”, na verdade o texto revela o des-conhecimento, o preconceito e a amargura de alguém que talvez tenha sido obrigada a freqüentar a Igreja na infância, mas que nunca viveu uma fé verdadeira, tanto que “sempre teve um pé atrás com essa história dos dogmas”. A professora considera “absurdos” os “mitos criados pela Igreja”, e acha que “acreditar em virgem Maria é o mesmo que acreditar em contos de fadas”. Declara ainda que escrever essa dissertação foi para ela uma “libertação”, permitindo-lhe “pôr para fora todos os seus demônios”.

Esse tipo de postura é bastante comum, e mostra que a fé não pode ser adquirida por imposição. Talvez a professora tenha tido pais ou professores excessivamente autoritários, com uma religiosidade formal e legalista. Não que isso seja necessariamente um sinal de falta de fé ou um empecilho à sua transmissão, mas, em pessoas de índole contestadora e rebelde, pode despertar revolta em vez de amor. O dom da fé é sempre um mistério, uma questão de comunicação íntima entre Deus e cada pessoa, que nossas atitudes podem favorecer ou dificultar, mas nunca controlar totalmente.

Em todo caso, fica claro que a professora é uma pessoa em luta consigo mesma, tentando encontrar um “bode expiatório” para os seus conflitos internos. Com certeza ela perceberá, com o tempo, que “exorcisou” os demônios errados, e que rejeitar o Deus do Antigo Testamento não a libertará das contradições da natureza humana... porque Deus não é a causa dos males do mundo ou dos vícios dos homens.

Ao contrário, Deus é a única saída para esses mesmos males (não porque os elimine, mas porque nos ensina a enxergar além deles). Quem rejeita Deus, rejeita a única fonte de paz e segurança confiáveis e duradouras. O homem, sozinho, é incapaz de dar um sentido pleno à própria vida, e é por isso que o mundo continua tão cheio de “violência, corrupção, desonestidade e traição” quanto sempre esteve. Enquanto o “mito” brota da ilusão humana de poder chegar à plenitude por suas próprias forças, a fé é algo bem diferente, pois não é criação da mente humana, mas revelação de Deus. O amor, o bem, a justiça, são sempre graça de Deus e fruto de nossa resposta de fé, enquanto o mal, a violência e a injustiça são iniciativas do homem, fruto de nossas fraquezas, e nos prejudicam na medida em que nos deixamos dominar por elas. Mas a visão distorcida da professora enxerga o contrário: para ela, a fé em Deus é a fonte do mal, e rejeitar Deus seria um caminho de libertação... Ou seja, sua atitude reflete exatamente a “falta de lógica” que ela atribui à Bíblia, ao dizer: “A Bíblia é um discurso passional que esqueceu toda a lógica da vida”. Como se a vida sem Deus tivesse alguma lógica...

A questão é que a Bíblia é um livro religioso, que só pode ser entendido na ótica da fé. É a história do amor incondicional de Deus para com a humanidade, tantas vezes retribuído com infidelidade e rejeição por esta mesma humanidade, como continuam a fazer pessoas como a professora Mariza. Se excluirmos Deus dessa história, realmente nada mais resta a não ser o pecado... que continua até hoje sendo cometido “em nome de Deus”, como fazia o povo do Antigo Testamento. Ou seja, em nome das justificativas que nós, autoproclamando-nos deuses, “senhores do bem e do mal”, fabricamos para as nossas infidelidades...

As atitudes de violência, injustiça e busca pelo poder narradas no Antigo Testamento não são, em nenhum momento, vontade de Deus. Ao contrário, são fruto da “não aceitação de um Deus como aquele”, que já naquele tempo pregava o amor, o perdão e a humildade, enquanto o povo, por preferir buscar outro tipo de bens, fazia-se de surdo ou interpretava mal as orientações divinas. É verdade que Deus promete “lutar ao lado de Israel” contra os inimigos, e lhe oferece uma terra que precisava ser “tomada” de outros. Mas isso reflete simplesmente a situação normal de luta pela sobrevivência naquela época (só naquela?). O povo de Israel caminha com as próprias pernas, como os demais povos, mas, ao contrário destes, percebe que não caminha sozinho... Está inserido na história com todas as suas contingências, mas percebe que sua vida tem um sentido que vai além da realidade presente... e que só pode ser percebido na medida em que renunciamos às nossas razões e deixamos que Deus nos conduza.

A professora é incoerente quando, para tentar provar que “toda verdade é relativa, dependendo do ponto de vista de quem conta”, tenta insinuar que os autores bíblicos teriam dissimulado o fato de que “perderam todas as guerras narradas na Bíblia”. Fica difícil saber de onde ela tirou essa idéia, já que as muitas derrotas sofridas por Israel são narradas com sinceridade e mesmo com humildade, sem nenhuma tentativa de “dourar a pílula”. O povo de Israel “quebra a cara” muitas vezes, mas, ao mesmo tempo, vive momentos maravilhosos de consolação, de arrependimento, de esperança, de bênçãos, de conversão. É preciso estar muito cego para passar cinco anos estudando o Antigo Testamento (como ela diz ter feito) e não perceber ali a presença tão palpável do amor e da fidelidade incondicional de Deus, que nunca abandonou seu povo, mesmo na provação. Rejeitar o Antigo Testamento significa uma recusa de olhar para dentro de nós mesmos, pois, no fundo, todos nós nos encontramos ali, tanto nos bons quanto nos maus momentos. A história do povo de Israel é a nossa história.

É claro que, para quem não acredita em Deus, a virgindade de Maria não faz mesmo sentido, pois ela é, justamente, uma prova de que a encarnação de Jesus não foi obra humana. Quando o homem se faz deus e rejeita outro Deus acima de si, tudo o que ultrapassa as possibilidades humanas se torna “absurdo”. Isso não é de surpreender. São Paulo já dizia que a sabedoria de Deus (que é a da cruz) é loucura para os homens... (1Cor 1, 23).

A fé é realmente exigente. Jesus não engana ninguém. Se alguém preferir “enveredar pelo caminho da descrença”, ele não nos retém. Para segui-lo é preciso renunciar à nossa “lógica” para acreditar que somos salvos pela loucura da cruz, e que as palavras de Jesus conduzem à vida, mesmo quando nos parecem absurdas... (Jo 6, 66-68).

Felizmente, Deus espera. E perdoa. Para nossa sorte, ele não nos retribui na medida de nossas infidelidades... e continua esperando que o coração ferido de Dona Mariza, assim como o de cada um de nós, possa um dia encontrar repouso junto ao seu coração transpassado...

Margarida Hulshof

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