RCC Tocantins
19/04/2007 - 00h00m

Discípulos e Missionários

 
Neste início do século XXI, a V Conferência do Episcopado da América Latina e do Caribe, a realizar-se em Aparecida (Santuário Nacional), recebeu do Papa Bento XVI, como foco de luz para rever sua missão evangelizadora, o tema "Discípulos e Missionários de Jesus Cristo para que n’Ele todos os povos tenham Vida". "Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida" (Jo.16,4). A reflexão que proponho sobre o tema não abrange maiores aplicações, mas se restringe, quase só, ao sentido dado por Jesus Cristo no Evangelho quando se refere ao discípulo em relação ao único Mestre e ao Mestre itinerante.

1) Lemos nos Atos dos Apóstolos (11, 26): "Foi em Antioquia que os discípulos receberam, pela primeira vez, o nome de cristãos." E o que é ser cristão? É ser discípulo de Cristo no sentido de segui-lo e estar ligado a Ele pessoalmente: "Rabí (Mestre) onde moras?... Venham e vocês verão. Então eles foram... E começaram a viver com Ele..." (Jo 1, 38-39). Este diálogo nasceu da pergunta provocadora de Jesus: "O que é que vocês estão procurando?" Ser discípulo é mais do que ser "adepto de uma pessoa", por exemplo: estar freqüentando missas dominicais, mas sem engajamento de vida. Em relação a Jesus, ser discípulo é ver Nele o único Mestre: "um só é o vosso Mestre" (Mt 1, 8). Em uma palavra, é fazer Dele o ideal de vida a exemplo do apóstolo Paulo: "Para mim viver é Jesus Cristo".

- Desde o início de sua vida pública, Jesus Cristo teve verdadeiramente a intuição de ser rabino, de ter seus discípulos e de reuni-los em torno de si. Alguns receberam convite privilegiado: os Doze (cfr. Mc 1, 16-20). Mas, em sentido amplo, a designação de discípulo aplica-se a todos que aceitaram segui-lo, partilharam sua vida com Ele e se deixaram modelar por seus ensinamentos .

- Ele não se compara aos doutores da Lei por não ser Mestre à maneira deles. Quando alude à Lei é para restituí-la à sua verdade, fazendo vê-la no regime da fé, sem reduzi-la à prática de observâncias. Procura resumi-la ao único mandamento do amor.

- Jesus se situa, antes, na linha dos profetas e se anuncia maior que qualquer outro profeta. Ao convidar para segui-lo, dá seu ensinamento com autoridade que não pode ser comparada com a dos profetas que o antecederam. Segui-lo significa, antes de tudo, conformar sua vida com a Dele e assumir com Ele tarefas austeras como a obrigação de carregar a cruz, excluindo todo romantismo na adesão à sua pessoa (Lc 9, 23-24).

2) Lucas (9, 57-62) indica os primeiros passos exigidos por Jesus para tornar-se Seu discípulo: "Enquanto iam andando, alguém no caminho disse a Jesus: Eu te seguirei para onde quer que fores". Mas Jesus lhe respondeu: "As raposas têm tocas e os pássaros têm ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde repousar a cabeça". Jesus disse a outro: "Siga-me". Esse respondeu: "Deixa primeiro que eu vá sepultar meu pai". Jesus respondeu: "Deixe que os mortos sepultem seus próprios mortos; mas você vá anunciar o Reino de Deus". Outro ainda lhe disse: "Eu te seguirei Senhor, mas deixa primeiro que eu vá me despedir do pessoal de minha casa." Mas Jesus lhe respondeu: "Quem põe a mão no arado e olha para trás não serve para o Reino de Deus". A Edição Pastoral do N.T. comenta este texto: "Os primeiros passos para os que seguem Jesus em seu caminho são: disponibilidade contínua, capacidade de renunciar as seguranças e, iniciado o caminho, não voltar para trás, por motivo nenhum”.

- Estas exigências são as condições necessárias para tornar-se discípulo de Jesus Cristo, de modo definitivo na vida de cada dia. Entre as exigências destaca-se o engajamento missionário: "Você vá anunciar o Reino de Deus" (v. 6). No texto que segue a este (Mt 10, 1-11), o envio dos 72 discípulos, Jesus impõe a seu discípulo as rupturas necessárias para divulgar o Reino, e recusa toda demora. Discípulo e missionário, duas palavras diferentes, mas exatamente com o mesmo sentido. Ninguém pode ser discípulo e não ser missionário nem ser missionário sem ser discípulo. Como entender, então, a vida religiosa contemplativa? Pergunte a Santa Terezinha do Menino Jesus e ela explicará porque a Igreja a declarou, junto com São Francisco Xavier, padroeira das Missões.

- Jesus, ao contrário dos mestres da época, era um Mestre itinerante. Não formou, por isso, discípulos sedentários, mas os associou a suas andanças missionárias: "andava por cidades e povoados pregando e anunciando a Boa Nova. Os doze iam com ele e também algumas mulheres... que ajudavam a Jesus e aos discípulos com os bens que possuíam" (Lc.8,1-3). O evangelista Marcos assinala a preocupação de Jesus em educar seus discípulos para o estilo missionário: "Vamos para outros lugares, às aldeias da redondeza. Devo pregar também ali, pois foi para isso que eu vim. E Jesus andava por toda a Galiléia pregando nas sinagogas e expulsando demônios" (Mc.1,38-39).

- No campo da ação pastoral, o que lhe falta, muitas vezes, para que os frutos apareçam, é tornar-se missionária. Muitas pessoas vão ao encontro da Igreja em busca dos sacramentos, são feitas exigências necessárias para uma válida e proveitosa recepção do sacramento, elas recebem o acolhimento que merecem, mas depois, não se engajam na comunidade. A Igreja não vai ao encontro delas e até mesmo as esquece. Uma idéia que considero vinda do Espírito Santo, mas que ainda não foi bem assumida, são as "Santas Missões Populares". A primeira recomendação de Jesus aos Doze, quando os enviou em missão, foi esta: "Vão primeiro às ovelhas perdidas da casa de Israel" (Mt 10, 6). João Paulo II interpreta esta palavra de Jesus aplicando-a à missão da ação pastoral: ir primeiro aos fiéis afastados da comunidade.

- A visão missionária da Igreja é a mesma recebida pelos Apóstolos no dia da Ascensão do Senhor, no monte da Galiléia: "Vão e façam com que todos os povos se tornem meus discípulos" (Mt 28, 19). Esta missão tem sido possível realizar porque carrega consigo a promessa do mesmo Senhor Jesus: "O Espírito Santo descerá sobre vocês, e dele receberão força para serem minhas testemunhas... até os extremos da terra" (At 1, 8). Como diz João Paulo II: "antes de ser ação, a missão é testemunho e irradiação" (RM. 26), o que está ao alcance de todo discípulo. No Concílio Vaticano II, documento "Gaudium et Spes", a Igreja se compromete a abrir um amplo diálogo com o mundo. O discípulo não pode se limitar a uma visão paroquialista da missão. A Carta Apostólica, Novo Millennio Ineunte, 56, afirma a orientação de que a Igreja não pode subtrair-se à atividade missionária junto aos povos, e permanece tarefa prioritária da "missio ad gentes" o anúncio de que é em Cristo, "Caminho, Verdade e Vida (Jo 14, 6) que os homens encontram a Salvação" (nº 56).

3) Ser discípulo é configurar-se a Jesus, Filho de Deus encarnado, recebendo a graça do nascimento novo no sacramento do Batismo, e tornar-se membro do Corpo de Cristo que é a Igreja. Pelo Batismo, o discípulo nasce na comunidade eclesial e nela há de crescer à semelhança de uma criança que nasce e cresce no seio de uma família. Não viver a comunidade eclesial é como tornar-se "menino de rua", sem família. A tarefa do discípulo, a exemplo do Mestre e sob o impulso do Espírito, é a de construir a verdadeira comunhão entre os homens. Ele só pode ser construtor da Comunhão porque já vive a comunhão. "Somos missionários por sermos Igreja que vive na unidade do amor e não tanto por aquilo que fazemos" (Redemptoris Missio, 23).

- A paróquia só se renova de verdade quando se torna "comunidade de comunidades", onde os fiéis terão possibilidade de partilhar a vida à luz da Palavra de Deus. É na vivência da pequena comunidade que os discípulos cumprem sua missão segundo a vontade do Divino Mestre: "Vós sois sal da terra, luz do mundo e fermento na massa". É a pequena comunidade que não deixa o sal perder sua força, sua luz, seu brilho e seu fermento, estragar-se. Cada pequena comunidade adquire fisionomia própria de vida e de missão no bairro ou no meio ambiente em que está plantada. O que a pode desfigurar é ela estar fechada em si e desligada da comunidade maior que tem a missão de retratar a unidade na diversidade. O desafio para a pastoral da Igreja, hoje, é encontrar uma estrutura que esteja em condições de promover uma autêntica unidade sem cair na uniformidade.

- A maneira concreta como se vive a comunhão eclesial tem visível repercussão sobre a maneira de a Igreja desempenhar sua missão. A comunhão eclesial está a serviço da missão. Comunhão e Missão estão profundamente interligadas. A Comunhão é, ao mesmo tempo, fonte e fruto da Missão. O mesmo e único Espírito une a Igreja e a manda pregar o Evangelho. É finalidade da Missão reunir o povo de Deus na escuta do Evangelho, na comunhão fraterna, na Oração e na Eucaristia (At 2, 42). A missão deve possibilitar à Igreja "nascer" em vários lugares e de forma criadora.

- A Igreja sabe ver o mundo quando faz análise de conjuntura política, social, econômica e cultural. Importante é também saber ver a si mesma de um modo crítico, com sentido de revisão de vida. Saber ver a crise dentro da própria Igreja-hoje na América Latina, à luz dos documentos do Concílio Vaticano II que apresenta uma Igreja-Comunhão, Povo de Deus, profética, servidora, missionária e em diálogo com o mundo, como ainda, à luz das Conferências Latino-americanas: Medelín, Puebla, Santo Domingo. Todos esses documentos mostram "a Luz que as trevas não apagam" (Jo 1, 5). Esta Luz, refletida pela Igreja, não pode ser guardada debaixo da cama. Há que mostrá-la no testemunho de vida: "Vós sois a luz do mundo". Que a Conferência de Aparecida a "coloque no candelabro e assim ela brilhe para todos os que estão em casa" (Mt 5, 16). E seja para todos, verdadeiro "Kairós", a chegada da salvação.

Dom Eduardo Koaik
Bispo emérito de Piracicaba (SP)

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