RCC Tocantins
06/07/2007 - 00h00m

As indulgências

 
Recentemente a questão das indulgências foi abordada no filme “Lutero”, e muitas pessoas afirmam que a Igreja construiu a Basílica de São Pedro com o dinheiro da venda das indulgências. Qual é a verdade? (Daniel Pinto – Goiânia/GO.)

A verdade é que a noção de “indulgência” tem sido, muitas vezes, mal compreendida, não apenas no tempo de Lutero, mas até hoje. O significado da palavra tem a ver com perdão, anistia, benevolência, cancelamento ou abatimento de uma dívida.

Essa “dívida” são os nossos pecados. A Igreja sempre entendeu que a penitência, ou reparação, deve estar associada à absolvição sacramental dos pecados, pois é por ela que o pecador comprova o seu arrependimento e fortalece a vontade para não voltar a pecar. Todo pecado, além da culpa, acarreta também uma desordem, um prejuízo, tem conseqüências, em nível pessoal e social. Um ladrão, por exemplo, pode arrepender-se de seu roubo e ser perdoado, mas não anulará o mal que fez, a não ser que devolva o que foi roubado. Quem espalhou uma calúnia, precisa restabelecer a verdade, além de pedir desculpas. Se houve violência física ou moral, morte ou perdas materiais, torna-se impossível desfazer o mal praticado, mas há ainda a possibilidade de compensar isso de alguma forma, se o criminoso arrependido se dedica à prática de boas obras, ajudando as pessoas ofendidas ou outras, como forma de reparação por seus crimes.

A absolvição sacramental perdoa apenas a culpa, mas não a “pena”, a necessidade de reparação do mal cometido. Para isso, havia a penitência, que sempre esteve associada ao sacramento da reconciliação.

Em tempos antigos, essas penitências eram muito severas, como jejuar durante os quarenta dias da quaresma ou outras mortificações corporais, com freqüência associadas a longas e arriscadas peregrinações a lugares santos. Só depois de cumprida a penitência é que a absolvição era dada, pois só então ficava comprovado o arrependimento do pecador e sua disposição para mudar de vida.

Devido às dificuldades de tal sistema (o penitente podia não sobreviver, ou ter sua saúde comprometida de forma permanente, ou não encontrar mais o mesmo padre para receber a absolvição após a penitência, etc.), as normas da Igreja em relação a esse sacramento foram, aos poucos, sendo abrandadas. Primeiro, com a antecipação da absolvição para o próprio momento da confissão (no final do séc. VI), e, depois, no séc IX, com a substituição das penitências rigorosas por outras mais leves.

A justificativa para esse procedimento estava na compreensão de que nossos pecados já foram expiados por Cristo na cruz. Cristo já pagou por nós a pena que deveríamos pagar. Também os méritos da Virgem Maria e dos Santos se associam aos de Cristo, formando um “tesouro” de graças do qual a Igreja é depositária, graças ao “poder das chaves” concedido a Pedro (Mt 16,19; 18,18). Jesus fala muitas vezes em “perdão das dívidas”, e mesmo a lei de Moisés já previa casos de abrandamento das penas prescritas, para quem não tivesse condições de cumprí-las (Lv 5,7-11), além da anistia geral nos anos jubilares.

Consciente da sua autoridade sobre o tesouro dos méritos de Cristo, a Igreja decidiu então aplicá-los em favor dos cristãos. Os pecadores que buscavam a reconciliação passaram a ter sua penitência “indulgenciada”, suavizada, aliviada. O penitente pagava apenas uma pequena parte de sua dívida, sendo o restante coberto pelos méritos de Cristo. As penitências severas foram substituídas por outras mais brandas, como orações, esmolas, peregrinações mais curtas, etc. Além disso, havia momentos em que a Igreja concedia indulgências especiais, como, por exemplo, nos anos de jubileu ou alguma outra festa importante, como acontece ainda hoje.

Mas, para que as indulgências tivessem efeito, era necessário que o pecador cumprisse as “penas simbólicas”, ou as obras de piedade prescritas, com a mesma contrição e fervor que teria ao submeter-se às severas mortificações de antes. E, naturalmente, era indispensável que, primeiro, estivesse sinceramente arrependido e recebesse a absolvição sacramental. Sem isso, ninguém recebia indulgências, e, portanto, não se pode dizer que elas fossem concedidas apenas em troca de uma esmola, ou de uma contribuição em dinheiro para as despesas da Igreja.

Nunca houve “venda” de indulgências na Igreja, mas houve, sim, pessoas que entenderam mal a doutrina, e pregadores descuidados ou levianos que deram a entender que, realmente, bastava o dinheiro para obter o cancelamento das penas. Foi o que aconteceu no tempo de Lutero, quando um arcebispo alemão ambicioso e endividado conseguiu licença de Roma para promover uma pregação de indulgências a fim de resolver seus problemas financeiros, desde que parte do dinheiro arrecadado fosse destinado a ajudar na construção da nova basílica de São Pedro.

Lutero não se revoltou com a doutrina das indulgências em si, mas com a interpretação errada que estava sendo dada a ela. O que mais o incomodou foi a afirmação de que a indulgência podia também ser aplicada em favor das almas do purgatório (já que, segundo o ensinamento da Igreja, a reparação dos pecados pode ser terminada no purgatório, para aqueles que morrem sem estar totalmente purificados de suas más inclinações, e já que a doutrina da comunhão dos santos permite que os méritos adquiridos por uma pessoa possam ser aplicados em favor de outra, viva ou morta).

Lutero achava que a maneira como as coisas estavam sendo feitas favorecia o relaxamento e a corrupção, e que mais valia estimular nos cristãos a prática das virtudes, como também a mortificação, como forma de exercitar a piedade e suscitar a verdadeira contrição. Suas famosas “95 teses” terminam justamente com uma exortação a que os cristãos procurem conquistar o céu enfrentando corajosamente as tribulações e fazendo penitência, ao invés de “comprar”, com dinheiro, uma paz de consciência ilusória.

Ele tinha razão em muitos pontos, embora se enganasse em outros. Mas isso, de qualquer forma, foi apenas o estopim que serviu de pretexto para um confronto que, na verdade, tinha muitas outras causas, tanto pessoais (perturbações interiores do próprio Lutero) quanto políticas e sociais. Havia uma crescente rivalidade política e religiosa entre os latinos e os germânicos, que aproveitaram esse pretexto para proclamar sua “independência” de Roma, sem falar na infiltração das idéias humanistas que apregoavam a rejeição a qualquer autoridade absoluta, incluindo a de Deus, que se expressa visivelmente na do Papa.

É verdade que a Igreja estava precisando seriamente de reformas, naquela época, e Lutero não era o único a sentir isso. Ele foi certamente um homem inteligente, capaz e bem-intencionado (ao menos inicialmente). Mas nem por isso é correto vê-lo como um herói idealista em defesa da fé ou como vítima inocente de uma Igreja opressora, pois a continuação da história deixou bem evidente a sua arrogância, intransigência e egocentrismo. Ele foi um ser humano comum, com qualidades e defeitos, assim como aqueles contra quem se voltou. Só que os seus atos de rebeldia, devido às circunstâncias, acabaram tendo conseqüências especialmente graves. Na pressa de querer consertar as coisas do seu jeito, ele acabou “jogando fora a criança junto com a água do banho”.

No plano da fé, não são os méritos pessoais, nem as opiniões, os gostos ou os interesses que determinam onde está a verdade, pois esta pertence a Deus. A autoridade da Igreja não se fundamenta na capacidade ou na virtude de seus administradores, mas sim no mandato divino, e na garantia dada por Jesus de que o Espírito Santo nunca deixaria de guiar as suas decisões. Respeitar a autoridade da Igreja é muito mais uma questão de fé do que de razão. A imposição da obediência não visa somente preservar a ortodoxia, mas também suscitar a humildade... sem a qual não pode existir verdadeiro amor a Deus.


Margarida Hulshof

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